"Putin considera que não existe uma identidade específica ucraniana"

Publicado: 21/02/2022, 10:07
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O pensamento de Putin sobre as relações entre a Rússia e a Ucrânia é contraditório com a ideologia bolchevique e pretende um regresso ao pensamento que predominava entre a elite do império czarista no século XIX, indicou à Lusa um académico e activista ucraniano

“Putin considera que não existe uma identidade específica ucraniana, quer um regresso à história do século XIX quando os russos diziam que existia uma nação russa composta por grandes russos, os moscovitas, bielorrussos, e pequenos russos, que para eles eram os ucranianos", disse à Lusa, Volodymyr Yermolenko, filósofo e professor associado na Universidade Kyiv-Mohyla.
"Devemos entender que Putin é muito mais arcaico que a própria ideologia soviética. Tentou ir além da ideologia soviética", assinalou, numa referência a um longo texto assinado pelo Presidente russo em 16 Julho de 2021, intitulado "Sobre a unidade histórica dos russos e ucranianos", que suscitou ampla discussão nos meios académicos e políticos dos dois países.
Um documento que contesta "as ideias de um povo ucraniano separado do povo russo" e que percorre "uma longa história comum" de russos, ucranianos e bielorrussos, "herdeiros da antiga Rus', que foi o maior país da Europa", um estado eslavo medieval, inicialmente centrado em Kiev, que remonta ao século IX.
Na sua reflexão, o líder do Kremlin também considera que a "verdadeira soberania da Ucrânia" apenas será possível "em parceria com a Rússia", recorda as comuns ligações "espirituais, humanas, civilizacionais estabelecidas desde há séculos" e sublinha que "formamos um único povo".
Putin acusa ainda os "actores ocidentais do projecto 'anti-russo'" de terem elaborado um sistema político ucraniano "com uma constante orientação em direcção à separação com a Rússia, à inimizade para com ela" -- independentemente de quem ocupar o poder --, assegura que o seu país nunca será "anti-ucraniano" e frisa que "os dirigentes da Ucrânia moderna e os seus mecenas exteriores" apenas possuem um objectivo, "conduzir ao enfraquecimento da Rússia, que convém aos nossos adversários".
Na perspectiva do académico, o chefe de Estado russo pretende "ir mais além da União Soviética", onde a ideologia oficial considerava que russos ucranianos e bielorrussos constituíam "três nações diferentes", mas com origens comuns.
"A abordagem do estalinismo era a de que provavelmente "se uniriam num único povo", mas a construção original foi delineada por Lenine, e em torno de um projecto federal, explicitou.
"Uma federação de Estados soberanos, com as suas fronteiras, hinos, escudos de armas. Lenine fez isso porque havia uma história de independência da Ucrânia, de tentativa de independência da Geórgia, etc., e desde o século XIX diversos intelectuais ucranianos sugeriam a ideia de que o Império russo se deveria tornar num Estado federado", prosseguiu Yermolenko, também director analítico na Internews Ukraine e chefe de redação da UkraineWorld.org.
"Os ucranianos sugeriam esta opção porque olhavam para o exemplo dos Estados Unidos. Tentavam aplicar essa espécie de modelo republicano ao império, republicanizar, tornar o império numa república de diferentes nações, numa federação".
Perante este cenário, confrontados com diversos movimentos nacionais, os primeiros dirigentes bolcheviques tentam e conseguem integrá-los na União Soviética, fundada em 1922, mas permitindo que mantivessem a sua identidade, e uma estrutura interna de tipo estatal.
"Mas houve comunistas ucranianos que pretendiam mais poder, não queriam o estatuto de república autónoma, antes um Estado soberano. Foi uma interessante abordagem; em resultado disso a propaganda soviética aceitava praticamente a entidade separada ucraniana. Mas depois tentaram castrá-la, aproximar a língua ucraniana da língua russa", recordou. "Mas a língua mais próxima do ucraniano é o bielorrusso, seguido do polaco", e o russo apenas surge de seguida.
"Basicamente, Putin diz que tudo isso é falso, que Lenine é um traidor, mesmo se considera que o colapso da União Soviética constituiu 'a maior tragédia geopolítica' da época, mas quer recuar para um período anterior, para o império russo, para o século XIX".
Para reforçar a sua tese, Volodymyr Yermolenko recorreu a um recente artigo de Vladislav Surkov (considerado o mentor do designado 'putinismo', a doutrina de Putin), no qual defende que a Rússia tem de regressar às fronteiras de 1918, "e da próxima vez poderão dizer que deve regressar às fronteiras do império russo em 1914, o que significa por exemplo um significativo território da Polónia".
Ao prosseguir a dissecação do artigo de Putin, sustentou que o seu principal objectivo consiste em negar a identidade ucraniana.
Mas para o académico, escritor e activista ucraniano, "Putin assiste à progressão para leste dos valores europeus de democracia e direitos humanos", acompanhou o "exemplo da Bielorrússia", apesar do recuo do movimento de contestação devido à repressão, e pretende com o seu homólogo de Minsk "erguer um muro face a estes valores democráticos que se deslocam para leste, por recearem que um dia atinjam território russo. E penso que num certo momento vão atingir".
Ainda na sua interpretação, Putin quis sobretudo sublinhar no seu artigo -- "e provavelmente acredita, o seu grande erro" -- que os ucranianos são russos, que o poder em 2014 foi tomado por uma minoria de nacionalistas que impôs essa ideologia à população baseada no estigma do "anti-Rússia", que a população comum rejeita em geral essa abordagem, que os russos serão apoiados quando regressarem.
"A realidade é totalmente diferente, cerca de 65% dos ucranianos pensa que a Rússia é a principal ameaça, a ameaça decisiva, e em comparação com outros. Por exemplo, apenas 15% considera os EUA a maior ameaça", enfatizou.
"A maioria considera a Rússia a principal ameaça, os partidos russos estão a perder nas sondagens, o apoio à língua ucraniana por quem se exprime em russo está a aumentar, há quem fale russo mas considera-se ucraniano e preparado para defender a Ucrânia".
Através destas observações, Volodymyr Yermolenko parece sugerir que o líder do maior país do mundo em extensão, e que pretende voltar a merecer o respeito dos seus grandes rivais internacionais, está de algum modo fora da realidade.
"Putin não entende o que se passa, se uma pessoa fala russo deverá aceitar a hegemonia russa, mas basicamente em cidades da Ucrânia toda a gente fala russo mas são muito anti-Kremlin, anti-Putin, antirrussos. É o paradoxo. Pode-se mesmo comparar com os EUA durante a guerra da independência, todos falavam em inglês, mas os patriotas eram anti-ingleses". (RM /NMinuto)

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